FIGURA INESQUECÍVEL - livros, abertura ao mundo
Das
figuras de vida, bem vistas as coisas, se as prioridades não fossem
apenas brotadas do acaso, o tio Miguel, de seu nome completo Miguel
António Foz teria de ser número um.
Da
facto o seu pai, meu avô materno, já se chamava Miguel Foz, morreu
precocemente, com vinte e seis anos, deixando quatro filhos, comprado
alguns pedaços de terreno e o nome de Casal do Foz, onde mandadou
construir a primeira casa local de habitação.
O
tio Miguel tinha casado com uma senhora viúva, proprietária de uma
pensão, em todo um prédio, o mais alto da cidade de Peniche, bem no centro
da então vila, com quatro andares, um espanto!...
A tia Elvira era um pouco mais velha e tinha já uma filha, a Glória em idade de namorar.
Em resultado, devido a uma destas patologias, pouco amigas de pessoas que ultrapassaram os "entas", o tio Miguel ficou viúvo.
Ainda
tentou manter e gerir a pensão, no entanto a alma da mesma, a tia
Elvira já não pertencia ao mundo dos vivos e o negócio acabou por se
tornar inviável, até porque os familiares da defunta, ainda esta estava
em câmara ardente, imediatamente desviaram muito recheio, como talheres,
tachos e outros apetrechos necessários à laboração.
Em
resultado o viúvo, viu-se na contingência de trespassar a pensão, onde
morava e recolher os pertences pessoais. Deles constavam um receptor de
rádio Galena e um baú recheado de livros, fechado a cadeado.
Todo este material esteve armazenado no sótão da casa dos meus pais, onde os filhos rapazes tinham o seu dormitório.
Acontecia,
ter os meus doze anos e "devorava" todas leituras, que ia conseguindo.
Tinha lido todas as revistas que o meu avô paterno tinha guardadas,
livros que conseguia na paroquia, adequados à minha tenra idade, mas
"queques" para o meu gosto, muito o jornal do Seminário de Coimbra, o
"Amigo do Povo", que o pai recebia semanalmente, como assinante anual, a
pagar por cada um desses períodos a quantia 5$00. Esse tinha rúbricas
interessantes, como o "Tio Ambróso e o Carlos ao Calor da Fogueira ou à
Sombra do Castanheiro", consoante fosse Inverno ou Verão.
Daí
um dia pensei, em como abrir o baú do tio. Pela "surra", experimentei o
cadeado com um arame e não é que estava ali um manancial de livros à
disposição?
A
partir dessa altura passei a ter bastante para ler, durante muito
tempo, pois só dispunha de tempo à noite, de dia já trabalhava, a sério
no campo de sol a sol.
Devorei avidamente, com a tenra idade de doze anos, livros como o grande volume
de Ferreira de Castro, "A Volta a Mundo", "Gaibéus, "Marés" e
"Avieiros", de Alves Redol, encadernados em conjunto, "Darwin seu Saber e
seus Erros", ensaio sobre a sua teoria da evolução do homem.
Muitos outros interessantes, de que não me lembro nomes, mas sei o quanto ali bebi de cultura.
Fiquei
a saber algo sobre a lenta progressão rumo à canonização de santos, mais
um livro critico sobre as aparições de Fátima, outro sobre a Segunda
Grande Guerra, Santa Filomena, um romance, género de Daniel Delfoi,
publicado em capítulos num jornal, depois encadernados.
Um
policial com a personagem de uma mulher muito frívola, capaz de sugar
rios de dinheiro, este tinha chegado à contingência de recorrer a
assaltos, para poder satisfazer todos os caprichos da sua amada.
A
amizade e os encontros com o irmão, de quem era muito amigo, um policial, passaram a servir para saber o andamento a investigação.
Rematava sempre, em fim de conversa: "Ourivesaria e Veronice são o meu
mundo".
O
epílogo acaba por ser dramático, o policial descobre que o gatuno que
procurava era o próprio irmão. Contrariado, cumpriu o dever de o
entregar a justiça.
A
aprendidagem terá resultado, porque naturalmente, passei a referir
assuntos desconhecidos na minha aldeia natal Bufarda. As pessoas até
acreditavam, porque saíam espontâneamente, porém não raro, perguntavam:
Onde aprendeste essas coisas rapaz?
Ressaltava então, um olhar modesto, enquanto fugia a mais interrogativo?
Só muito mais tarde, com as aulas liceais, vieram muitas respostas que ficaram a pairar nas minhas cogitações.
Devo
dizer que atribuo muito da minha formação a esta circunstância, a tal
ponto que, como trabalhador rural, comecei por fazer os dois primeiros
anos do liceu, em apenas num ano, a trabalhar para pagar a escola
particular, mais dois cursos - dactilografia e estenografia, acabei por ser dispensado da oral.
Mesmo com esta bagagem de baú, olhando o passado, não devo continuar modesto, acima da média e exclamar:
- Um êxito!...
Evidentemente,
se sempre gostei do tio Miguel, ele passou a ser um ídolo, tanto mais
que adoptei o seu nome como pseudónimo (registado), em Director
executivo, da minha Revista FRANQUIA - Revista Filatélica Portuguesa e de bastantes escritos dos anos
setenta.
Homenageava
o tio Miguel e o meu avô, com o mesmo nome, recordado, pelo filho mais
velho, o tio José Miguel, que também apreciava, assim como a tia
Lourdes, a cuja celebração de noventa anos tive o prazer de assistir.
Depois, com uma certa dose de emoção, poder realmente dizer: presente!..
Daniel Costa
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